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Eduarda Dionísio

Na segunda-feira dia 22 de Maio morreu Eduarda Dionísio, vítima de um cancro de pulmão. Ainda não tinha completado 77 anos.

É uma perda enorme para todos e para a Casa da Achada – Centro Mário Dionísio, associação por si idealizada, fundada e onde fez tanto e com tanta gente. Ela foi o motor, as mãos, a inteligência, a inspiração, a crítica, a imaginação, a memória. Durante muito tempo, ao lado do seu companheiro Vítor Ribeiro, o Maçariku.

Da sua cabeça e do seu esforço saíram dezenas de actividades, exposições, projectos, convites a pessoas, ideias, edições, trabalhos de arquivo e divulgação. A lista é interminável.

Saíram também livros seus, como Francisco Castro Rodrigues – Um cesto de cerejas – conversas, memórias, uma vida, com organização, introdução e notas de Eduarda Dionísio (edição da Casa da Achada em 2009).

Actualmente, a Eduarda estava a preparar a edição do 5.º e último volume do diário inédito de Mário Dionísio, Passageiro Clandestino. Não pôde terminar esse trabalho. Foram editados (entre 2021 e 2023) os primeiros quatro volumes deste diário, todos eles acompanhados de volumes autónomos de notas escritas por ela. Essas notas, para além de contextualizarem o texto de Mário Dionísio, são um trabalho de investigação precioso para a história do século XX português, com o seu olhar, o seu rigor e o seu sentido crítico.

É impossível dizer em poucas palavras o que foi e o que fez esta mulher extraordinária. A Eduarda gostava que as coisas fossem úteis, protestava contra o desperdício de materiais, de esforços e ideias. Todo o seu trabalho associativo tem a ver com quebra de barreiras: entre leigos e os especialistas, entre amadores e profissionais e entre classes sociais diferentes. Derrubar as barreiras, também, entre o pensar e o fazer, propondo sempre que juntássemos acção e pensamento, mãos e cabeça. “Viva a liberdade, dentro e fora da cabeça”, dizia uma camisola feita na Abril em Maio, associação onde circulavam ideias, objectos, textos, filmes, artes e artesanatos contra as lógicas culturais mercantis. Fazedora incansável em mil disciplinas diferentes (escrever, ensinar, pintar, fazer artes gráficas, editar, intervir, investigar…), a Eduarda valorizava os saberes-fazer, as técnicas, as sabedorias que extravasam os currículos académicos, as formas diferentes de nos relacionarmos como seres humanos, de viver e pensar o mundo (livremente!) e as possibilidades de o transformar. Outra barreira ainda a superar: ser capaz de alargar as fronteiras do possível, contra o “sempre foi assim”, coisa que ela combateu com todas as suas forças. Porque pensava que tudo podia ser de outra forma. Por isso fez amizades pelo mundo inteiro com gente que partilhava, de uma forma ou de outra, esta atitude crítica, solidária, transformadora.

Uma biografia (impossível e incompleta)

Eduarda Dionísio nasceu a 6 de Junho de 1946 em Lisboa. Estudou no Liceu Francês e depois na Faculdade de Letras de Lisboa onde se licenciou em Filologia Românica.

Participou nos movimentos estudantis antes do 25 de Abril. Fez parte do Grupo de Teatro da Faculdade de Letras (1969, com Jorge Silva Melo, Luís Miguel Cintra e outros). Em 1968, aos 22 anos, publicou, com Almeida Faria e Luís Salgado de Matos, o livro Situação da Arte, resultado de um inquérito feito a artistas e intelectuais portugueses. Em 1971 fundou com Jorge Silva Melo o jornal Crítica. Em 1972 editou o seu primeiro romance, Comente o Seguinte Texto:. Escreveu depois várias obras literárias, romances e muitas outras de difícil catalogação, como o importante livro sobre a cultura em Portugal Títulos, acções e obrigações – sobre a cultura em Portugal – 1974-1994.

Foi professora de Português no ensino secundário durante grande parte da sua vida (Liceu Camões, Escola Secundária da Cidade Universitária, Escola Gil Vicente). Foi militante nas escolas, delegada sindical, dirigente sindical (77/78), fundadora do núcleo de professores do Movimento de Esquerda Socialista (onde esteve até Dezembro de 75), fundadora da CEC — Contra a Escola Capitalista — que reunia dezenas de professores sem partido e cuja actuação excedia a actividade sindical.

Foi tradutora, artista plástica e crítica literária. Escreveu para vários jornais e revistas em épocas diferentes (Seara NovaDiário de Lisboa, jornal Combate e muitos outros). Participou, como independente, na campanha eleitoral do PSR ao Parlamento Europeu de 1987.

Dedicou-se ao teatro, tendo sido actriz, dramaturga, cenógrafa, etc. (Faculdade de Letras, Teatro da Cornucópia, Teatro O Bando, Contra-Regra, que fundou com Antonino Solmer). Traduziu textos de Shakespeare, Brecht ou Heiner Müller, e fez vários trabalhos de dramaturgia, como Dou-Che-Lo Vivo, Dou-Che-Lo Morto (co-autoria com Antonino Solmer), a partir de textos de Camões, ou Primavera Negra, colagem de textos de Raul Brandão. Escreveu, a pedido de Adriano Luz, Antes que a Noite Venha, os monólogos de Medeia, Antígona, Julieta e Castro nas vozes de quatro mulheres da noite, peça levada à cena em 1992 na Cornucópia.

Foi uma das fundadoras da Associação Abril em Maio, em 1994, associação com importante intervenção cultural até 2005, inspirada na memória do movimento popular da revolução portuguesa, onde realizou centenas de actividades, encontros e edições. Em 2006 esteve no projecto do jornal PREC (Põe Rapa Empurra Cai, que teve apenas 3 números), edição que paginava com Vítor Silva Tavares e à volta da qual se realizaram várias séries de encontros, debates e conversas sobre arte, política e sociedade. Em 2008 fundou, com uma série de amigos, alunos, e familiares de Mário Dionísio (ou estudiosos da sua obra) a Casa da Achada – Centro Mário Dionísio, arquivo vivo e associação cultural com intervenção diversificada, dedicada antes de mais à divulgação da vida e da obra do seu pai, Mário Dionísio, e da sua mãe, Maria Letícia Clemente da Silva.

19 comentários a “Eduarda Dionísio”

  1. Jorge Sales Golias diz:

    Venho apresentar os meus sentidos pêsames à família de Eduarda Dionísio e à Casa da Achada pelo seu falecimento. Conheci-a numa palestra sobre o 25 de Abril que dei na Casa onde ela me recebeu com muita simpatia e cordialidade.
    A minha homenagem à mulher que levantou a magnífica Casa da Achada em memória de seu pai, e que deixa uma grande obra em prol da cultura e da liberdade de pensamento.

    Carnaxide, 24 de Maio 2023
    Jorge Sales Golias
    capitão de Abril

  2. Guadalupe Magalhães Portelinha diz:

    É uma perda irreparável. Tinha uma profunda admiração por ela, pelo seu jeito discreto mas extremamente interventivo e atuante .Pela sua determinação e capacidade de realização, pela sua criatividade, pela sua imensa cultura.
    Um grande abraço solidário e amigo à família e amigos.

  3. […] [Notícias] Centro Mário Dionísio » Arquivo » Eduarda Dionísio (centromariodionisio.org) […]

  4. Anália Gomes diz:

    Obrigada pela seleção de fotos, mostrando-nos a Eduarda Dionísio como hei-de sempre recordá-la: em ação, com as mãos na massa, o eterno ar de gaiata, interventiva, decidida e determinada. Ergueu um espaço de Cultura, Liberdade e Solidariedade, um pólo cultural incontornável na grande urbe. Um forte abraço solidário à Diana, restante família e amigos

  5. António Carlos Cortez diz:

    Conheci a Eduarda Dionísio por ocasião dum encontro na faculdade de letras. Foi pela mão de Maria Alzira Seixo, amiga comum. Houve uma natural simpatia mútua. Em 2016, Eduarda aceitou que na sua Casa eu falasse do seu pai. Recordo-me bem, ED não era adepta de academismos, gostava de simplicidade, era de uma ironia sagaz. Gostava (isso via-se) de viver. Era lúcida e crítica. Fiz-me sócio há meses. Devia tê-lo feito há anos. Há meses autorizou a reprodução dum ensaio de MD para a INCM, gesto generoso, que nao esquecerei. Eduarda Dionísio era dum tempo com livros, liberdade, civismo, oposto a este. Livros, arte, liberdade – palavras que a definem e que para nós, a braços com a alienação actual, deveremos saber resgatar do esquecimento. Eduarda Dionísio, obrigado. António Carlos Cortez

  6. Leonor Baeta Neves diz:

    Amiga desde sempre (adolescência). Faltam-me palavras mas sinto já uma saudade imensa. Que falta nos vai fazer!

  7. Papoila de ardor silvestre
    Intrépida tenaz vibrante
    Deixas cá tudo o que trouxeste
    Daquele amor à nossa gente

  8. Manuela Novais diz:

    Foi com enorme pesar que recebi a notícia do falecimento da Eduarda. Trilhámos o mesmo caminho desde os 10 anos, no nosso liceu, o Filipa de Lencastre, até ao fim da Faculdade, embora em cursos diferentes. Tive o privilégio e a grande honra de ter sido aluna da sua mãe, sem dúvida a melhor professora que tive. Tinha ido à Casa da Achada pouco antes do 25 de Abril, onde a encontrei embrenhada na preparação do último volume da biografia do pai. Livros, papéis, computador. O mesmo entusiasmo de sempre, o mesmo sorriso gaiato que sempre lhe conheci. Deixo aqui a minha enorme admiração pela mulher que foi. As minhas condolências à
    familia e à Casa da Achada. Obrigada, Eduarda!

  9. Ali está ele. ainda, capa azul desbotada a dizer «retrato dum amigo enquanto falo», letras minúsculas sobre um nome, EDUARDA DIONÌSIO, a me convidar ao lazer e à escrita. Retire-o de novo da estante, entre Almeida Faria e Maria Isabel Barreno, a contracapa roída pelos meus habitantes rastejantes, a capa, ainda incólume, de Cristina Reis, 750 exemplares editados em 2ª edição pelo Armazém das Letras, em 1979 e comprado nesse mesmo ano, no Infante da Livraria Silva em Faro. Sim, na verdade «Havia assim pessoas aparentemente banais que tinham uma densidade que me prendia a atenção».

  10. Natércia Coimbra diz:

    Acho que a vida me fez adoecer e perder a memória pouco tempo antes da morte da Eduarda porque sabia que eu não ia aguentar o desgosto. Quando voltei a acordar do limbo em que a doença me colocara foi tão duro que cheguei a pensar que teria sido melhor não sair do limbo. Mas não seria isso que a Eduarada quereria. Mais do que nunca na situação que estanos a atravessar é preciso coragem para dizer o que é difícil dizer e fazer, procuraar novos caminhos e não separar e viver a cultura/culturas segundo estigmas – eruditas, académicas, populares etc.., mas sim fazendo-as, praticando-as. Era esse o caminho nada fácil, que temos agora que enfrentar sem o seu vigor e a crença inquebrantável em que a cultura não é só uma. Sim esse, só esse, poderá ser o caminho que ela haveria de querer que a Casa a Achada prosseguisse se houvesse gente, mãos e almas para continuar a achar que outros caminhos são sempre possíveis.

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André Spencer e F. Pedro Oliveira para Casa da Achada - Centro Mário Dionísio | 2009-2020