Este poema de «Le feu qui dort» levou-nos a Joan Miró: uma pintura intitulada A cobra com papoilas andando sobre um campo de violetas povoado por lagartos enlutados
54. Por muito que gritemos vitória sobre as fraquezas pretensamente irrisórias
Sob as flores cilada da curva da estrada a nossa víbora torturada torcionária aguarda
Este poema de Le feu qui dort, que Mário Dionísio escreveu em francês, foi traduzido pela Regina Guimarães e fez-nos encontrar uma litografia de Georg Grosz, artista de duras sátiras.
Aqui vão os poemas e o desenho.
23. Qui dort dîne Alors dormons
pendant qu’ils dînent pour de bon et nous dînons-dormons
cette soupe madame est un chef-d’oeuvre
nous voyons écoeurés le ballet des pieds-plats nous apprenons à nous coucher sur des épines nous savourons les mille façons d’avaler des couleuvres
avez-vous essayé ce beau pâté de foie
bercés nourris par la sagesse des nations nous dormons que tout est calme nous dormons
23. Quem dorme come Durmamos então Enquanto eles jantam de verdade e nós comemos-dormimos
minha senhora, esta sopa é uma obra-prima
agoniados assistimos ao bailado dos pés chatos aprendemos a deitar-nos sobre espinhos saboreamos as mil maneiras de engolir sapos
já provou esta pasta de fígado divinal
a sabedoria das nações dá-nos embalo e sustento e nós dormimos oh que calma nós dormimos
Um poema de «As solicitações e emboscadas», livro de 1945, levou-nos a muitas mãos gretadas pintadas. Mas detivemo-nos nestas do «Retrato de mulher sentada», de Rembrandt, uns 300 anos anteriores ao poema de Mário Dionísio.
ESSA TRAGÉDIA TÃO VULGAR
Oh mulher das mãos gretadas
Como era brando o ar que te fechava os olhos e soprava o teu cabelo e o teu vestido Como o teu coração batia espavorido aos passos dele ao fim da rua E como os dedos dele eram ingénuos e tremiam também nesse ontem esfiapado na distância
E a casa e a casa e casar e a casa como uma asa levíssima roçando a doce pele dos quinze anos
Mas agora ele adormece à mesa tão cansado todas as noites tão cansado e infeliz e tu estás sempre séria com os ombros caídos e tens as mãos gretadas
Do livro Solicitações e emboscadas, lançado em 1945 por Mário Dionísio, saltou este «Domingo». E o poema pôs-se à escuta de um quadro de Marc Chagall de 1924, o «Violinista verde».
DOMINGO
cego ao fim da rua e o violino e este sol indolente de domingo soprando um ameaço de beleza nas cabeças despenteadas que surgem por acaso nas janelas Abarcando tudo entrando em tudo a música do cego ao fim da rua insistente errada mas dormente sem uma esmola no chapéu E eu indiferente a tudo isto? Que se passa Música de cego que tanto me buliste sempre até cá dentro? É a força que nasce?
Um pequeno poema do livro «Terceira Idade», de Mário Dionísio, de 1982, levou-nos a olhar de outra forma estes «Velhos carvalhos» de Edward Munch, pintados em 1923.
XLVIII
Quanto ainda durarão estas árvores secando com raras folhas de adeus?
Quem passa olha-as pensando na boa lenha que darão para aquecer os seus
Desta vez um quadro de John Constable, onde podia soar um "rufo de asas", pôs-se à conversa com um pequeno poema de Mário Dionísio, o poema XIV do livro Terceira Idade, de 1982.
XIV
Assustado rufo de asas na floresta
Tão indistinta voz que não há voz que a diga
Assomar de quase nada que é tudo o que nos resta
Dourado fosco de moldura antiga
Entre «Riso Dissonante» (1950) e «Memória de um pintor desconhecido» (1965) passaram quinze anos em que Mário Dionísio não parou de escrever poesia. Alguns poemas desse período foram reunidos com o título «O silêncio voluntário». Um deles é «Adão e Eva entre os andaimes», que se refere directamente a este quadro de Fernand Léger. O poema foi cortado pela censura…
Adão e Eva entre os andaimes
Outro é o tempo outro será dos ócios que tu sonhas conquistados Adão e Eva entre os andaimes destas horas reconstruindo paz
Por entre as nuvens de aço e o semblante embiocado do destino amargo teu contorno de força azul ou negro forja amarelos de raivosa esperança
Saúde a ti que rasgas novas flores no peito desolado e ao riso forças máquinas cegas que ainda nos não ouvem
Saúde a ti pedreiro deslumbrado cujos verdes azuis vermelhos brancos trazem das lamas da estação infame a certeza serena e alvoroçada da alegria civil
O poema n.º 25 de «Memória de um pintor desconhecido» de Mário Dionísio levou-nos a esta onda de Gustave Courbet, uma das suas sete pinturas de «mares tempestuosos» pintadas entre 1869 e 1870.
25.
Altos cachões de espuma com instantes de prata um corpo aqui se afunda em seu túmulo de água
De extremo a extremo um pano azul puído e sujo batido pelo vento em si mesmo desata um arvoredo de mágoa
Rola no horizonte o peso redondo e cavo dum balão de medo
O poema 46 de «Memória de um pintor desconhecido», de Mário Dionísio, pôs-se a chamar por um quadro de Edward Hopper. Pareceu-nos que este «Automat – 1927» se encontrava bem com o poema.
Neste café quase deserto não espero hoje ninguém senão a cor difusa duma ausência que não magoa e sabe bem
Uma palavra ou outra incompleta se recorta na memória um minuto preguiçosa só mal desperta quando a porta se abre e fecha e entra alguém que vai sentar-se longe ou aqui perto
O sol de inverno sinto-o nos dedos como discreta ajuda carinhosa a esta construída sonolência tão espontânea sei lá em tanta gente
Que longe tudo o que procuro!
Ser como os outros todos um instante que seja e tão tranquilo e diferente! sem planos sem segredossem história sem passado sem futuro
Um excerto de um poema de Mário Dionísio levou-nos aos quadros e assemblages de Robert Rauschenberg. Alguns deles foram chamados de “combine”, porque cruzavam técnicas da pintura e colagens de objectos a três dimensões.
Eis o sugestivo e intrigante excerto do poema de «Memória de um pintor desconhecido», o n.º 77:
«(…) Em breve também eu pintarei com barbatanas de plástico latas velhas esquecidas no lixo da cidade pregos tinta negra aparas de borracha em amor nem desprezo lançarei vermelhos e amarelos com os olhos fechados e num canto da tela inventarei com pedaços do Match ao acaso recortados um engenho inquietante todo latas de graxa escovas um elástico atirando bolinhas de pus ruidosamente musicais à cara dos espectadores que não são eles mas tu e eu e eles»
Um poema de «Memória de um pintor desconhecido», um livro de poesia de Mário Dionísio de 1965, fez-nos encontrar um quadro de René Magritte, uma das suas duas pinturas chamadas «La condition humaine» (A condição humana), dos anos 30. Um pergunta pela inspiração, o outro pelo quadro. Onde estão ambos, afinal?
72.
Entrou aqui a inspiração pela janela aberta apanhou o artista de surpresa que não cria nela
Num turbilhão de folhas e de sóis entre nuvens peixes pedras luas estrelas cantam os galos de Lurçat
Bom dia corações de girassol e astros com cabelos Bom dia homens com raízes
Pairam na lã os ares do Loire e do Garona meiga luz de velhíssimos teares cheiro a cachos do Beaune meiga luz dos mil matizes do aroma da doce terra de França
Entre troncos caídos em clareiras virgens graves galos garbosos de esporões floridos com a manhã nas cristas
Que outras horas são estas Que outros sítios e olhos? Que mendigos em festa? Que serenidades imprevistas?
Galos negros e azuis entre o presente e o futuro traçam nos túneis absurdos esguias figuras mudas
Galos verdes e castanhos rasgam na alma os lanhos da poeira dos anos
Galos vermelhos brancos amarelos no ponto robusto de ásperas lãs soltam clarins nas ruínas ermas dos castelos de que se erguem amanhãs
Oh universos suspensos de Lurçat nos nevoeiros densos da doce terra de França Oh fanfarras desgrenhadas nas auroras dúbias e ousadas na doce terra de França
Teus galos cantam fúria e eu oiço amor teus galos cantam dor e luto e noite e eu oiço esperança
Mário Dionísio admirava muito as tapeçarias de Jean Lurçat.
Em 1950 escreveu este poema que acompanhamos com a imagem de um dos seus muitos galos tecidos em lã.
Esta semana lembrámo-nos de um quadro de Kazimir Malevich, Quadrado branco sobre fundo branco, um óleo sobre tela, de 79,4 × 79,4 cm, pintado em 1918. Uma pintura conservada no Museum of Modern Art, em Nova Iorque, nos EUA. A propósito deste belo poema de Mário Dionísio, incluído no livro Memória de um pintor desconhecido, de 1965.
Branco de neve branco de leite
branco de cal branco de lua
Contra branco outro branco Um outro branco ainda sobre um novo branco de espuma com areia quase branca
Toda a ternura a fadiga a mágoa imensa do branco contra branco sobre branco na brancura mergulha branca flui
Branco entre limos Branco entre mastros
Por túneis brancos ruas brancas sombras brancas maciamente o branco longamente inventa branco na crua branca amargura dos anos cegos Brancos
Aqui vai um dos poemas de O riso dissonante, que nos fez lembrar um quadro de Fernand Léger (uma das versões de Les constructeurs), um pintor que Mário Dionísio admirava. E, curiosamente, quadro e poema são os dois de 1950…
27. um boné de pala sobre o mundo hirto de sombra iluminada lança uma flor de arremesso nítida erguendo bairros de frescor
sobre máquinas novas homens velhos mudam a pele às horas oleosas canta atrevido entre o fumo denso das chaminés um pássaro invisível
com as blusas manchadas com as mãos manchadas com o riso e a voz para sempre manchados homens áfonos soltam o prenúncio da alegria do tempo inevitável