Morreu Maria Letícia
29 de Dezembro de 2010No passado dia 27 de Dezembro morreu, aos 95 anos, Maria Letícia Clemente da Silva, companheira de toda a vida de Mário Dionísio.
Maria Letícia nasceu em 12 de Setembro de 1915, em Beja. Ainda criança, mudou-se com a família para Lisboa, onde sempre viveu. Na Semana de Abertura da Casa da Achada – Centro Mário Dionísio, Eduarda Dionísio contou-nos esta história:
«Era uma vez um miúdo, nascido no século XIX, de «mãe incógnita» segundo ouvi dizer, criado na Casa Pia, depois ferroviário, republicano e maçon (o que só soube depois da sua morte), que tirou o curso de Direito enquanto a filha fazia o liceu no Camões (uma das poucas raparigas que por lá andaram ao mesmo tempo que Álvaro Cunhal, nos anos 20 do século XX). A mulher desse ferroviário tinha o curso do magistério primário (tirado nos anos 10 do mesmo século), mas nunca teve profissão porque se casou com ele. Aplicou os saberes a preparar a filha para tirar a 4ª classe, a fazer fotografia em casa e na economia doméstica. Mal contada, esta é a história da pequena ascensão dos pais de Maria Letícia.»
Para além de ter concluído o Curso Superior de Piano do Conservatório Nacional, tendo sido aluna de música de Oliva Guerra e Francine Benoît, Maria Letícia terminou em 1937 o curso de Filologia Clássica na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde conheceu Mário Dionísio, com quem casou em 1940. Fez o estágio do ensino liceal em Lisboa, no Liceu Pedro Nunes, e foi professora de Português e de Latim no Liceu de Santarém, no Liceu Camões, no Liceu D. Filipa de Lencastre e no Liceu Rainha D. Leonor. Deu também aulas particulares.
Em 1947, foi afastada do ensino durante oito anos (até 1955) pelo regime salazarista «por razões de ordem política», nunca explicadas. Julga-se que por ter assinado as listas para a constituição do MUD (Movimento de Unidade Democrática) em 1945.
Também em 1945, depois do fim da guerra, altura em que nasceu uma nova esperança de mudança política em Portugal – que como sabemos não se veio a verificar… –, Maria Letícia fez parte do numeroso grupo de mulheres que aderiu ao Conselho Nacional de Mulheres Portuguesas, encerrado pelo Estado Novo em 1947. Pertenceu também à Associação Feminina Portuguesa para a Paz, de que foi Presidente, Vice-Presidente e Secretária da Assembleia Geral, entre 1945 e 1951, quando a associação foi encerrada pelo Estado Novo.
Maria Letícia Clemente da Silva e Maria Emília Coutinho Diniz foram colaboradoras de A Capital (de Março de 1968 a Julho de 1969) com o pseudónimo de Dinis da Silva, uma vez que os professores do ensino oficial só podiam nesta época escrever nos jornais sobre ensino depois de superiormente autorizados. Manteve com este pseudónimo a secção «Consultório Escolar».
Maria Letícia dedicou também muito do seu tempo à tradução, tendo traduzido e introduzido várias obras e apoiado o trabalho de outros tradutores. Foi ainda autora, com Eduarda Dionísio, de livros escolares para o ensino do Português, publicados entre 1972 e 1975 e adoptados pelas escolas durante alguns anos.
O espólio de Maria Letícia Clemente da Silva, ainda não estudado, que inclui a sua biblioteca (a mesma de Mário Dionísio), está disponível ao público no Centro de Documentação do Centro Mário Dionísio desde a abertura da Casa da Achada.
Não é demais repetir que sem a memória (rigorosa e crítica) e o trabalho de Maria Letícia – que começou, com Natércia Coimbra, a organização e catalogação do espólio de Mário Dionísio logo em 1994 –, sem as suas economias – que foram suficientes para adquirir o prédio em que se instalou a Casa da Achada – e sem a sua vida dedicada a Mário Dionísio, à educação e ao conhecimento, e à luta por um mundo diferente, não existiria esta casa.
à Maria Letícia
chapelinho de quadrados de vagar pela rua frenética com uma fímbria de sol no laço e uma saudade solta desce um ar de natal sobre os passeios sobre as pessoas sobre os carros e um olhar sem palavras que flutua põe-se a dizer de manso antigamente sinto surpreso que há momentos em que as próprias rugas sabem bem a ao nosso lado numa alegria de cabelos soltos o passado e o futuro correm de mãos dadas
MÁRIO DIONÍSIO, O riso dissonante, 1950