Fronteiras de resistência – notícia de uma viagem a Cambedo da Raia
Nos dias 18 e 19 de Dezembro de 2021 o coro da Achada deslocou-se a Cambedo da Raia (concelho de Chaves) e a Campobecerros, terras de fronteira onde se homenagearam resistentes aos fascismos ibéricos. A história oficial repete que os vizinhos de Cambedo abrigaram criminosos. Ali ouviu-se uma história bem diferente.
O coro deslocou-se de autocarro, transporte garantido pelo Museu do Aljube, que se associou às duas acções de homenagem organizadas por Paula Godinho, antropóloga da Universidade Nova que realizou trabalhos de investigação naquela região durante vários anos. O fim-de-semana foi organizado em colaboração com várias pessoas e entidades interessadas na memória histórica da resistência anti-franquista e anti-salazarista, do lado de cá e do lado de lá da fronteira. Eram antropólogos, arqueólogos, historiadores, membros de movimentos cívicos e grupos políticos, associações locais e museus, de associações e grupos musicais, amigos e amigas dos dois lados da raia.
No dia 18 realizou-se no centro da aldeia de Cambedo da Raia um acto de homenagem aos “vizinhos de Cambedo”, terra que albergou resistentes anti-fascistas e que foi atacada violentamente (e bombardeada!) por uma acção conjunta da Guardia Civil, do exército e da GNR portuguesa (com a colaboração da PIDE). Dois dos resistentes foram assassinados. Um terceiro foi preso e enviado para o campo do Tarrafal, em Cabo Verde. Isto aconteceu em 1946, bem depois do fim da Guerra Civil Espanhola e já terminada a Segunda Guerra Mundial.
Cambedo servia de apoio a vários refugiados e guerrilheiros galegos que se opunham às forças franquistas e procuravam escapar aos fuzilamentos, ao terror e à repressão. No entanto, muitos deles eram descritos pelas autoridades simplesmente como malfeitores, criminosos ou contrabandistas. A «Guerra do Cambedo», em que habitações foram destruídas, pessoas feridas e dois guerrilheiros mortos, foi encoberta pela censura.
A GNR e a PIDE farão dezenas de detenções na região, prendendo famílias inteiras, acusadas de acolher «bandos de malfeitores». No dia 21 de dezembro de 1946, há 75 anos, estavam refugiados em Cambedo três guerrilheiros galegos: Demetrio García Alvarez, Juan Salgado Ribero e Bernardino Garcia y Garcia.
A repressão feroz foi lembrada nesta ocasião, ao mesmo tempo que foi elogiada a coragem e a solidariedade dos vizinhos de Cambedo que esconderam e ajudaram os perseguidos pelos regimes totalitários português e espanhol. Houve pequenos discursos de organizações locais (Centro Desportivo Cultural e Recreativo de Cambedo da Raia), da Junta de Freguesia de Vilarelho da Raia, de resistentes e ex-presos políticos, de membros de organizações anti-fascistas ou que lutam pelo “direito à memória histórica” (como a URAP ou o movimento Não Apaguem a Memória).
Depois das intervenções, ouviu-se um poema de Louis Aragon relacionado com a Guerra Civil de Espanha e o coro da Achada lançou canções alusivas à Guerra Civil Espanhola e à luta anti-franquista. Santo Cristo de Fisterre, em galego, En el pozo María Luisa, em castelhano, Só ouve o brado da terra (de Zeca Afonso), em português, foram algumas delas.
Estava uma centena de pessoas presentes. E alguns ausentes lembrados: por exemplo António Loja Neves, jornalista, escritor e documentarista, que correalizou com José Manuel Alves Pereira o filme «O Silêncio», precisamente sobre o silenciamento deliberado destes acontecimentos (este filme foi projectado na Casa da Achada em 2012 numa série de sessões realizadas sobre estes assuntos).
Seguiu-se mais música e festa, com acordeão, violino, gaita de foles e muitos adufes, com malta vinda do Porto (alguns dos «Bugalhos» e de vários grupos amigos) que cantou canções populares dos dois lados da fronteira. Vizinhas ofereceram uma jeropiga e ainda se esteve por ali até ao fim da tarde de Sábado, cantando e dançando ali no centro da aldeia, junto à igreja de Cambedo.
No Domingo de manhã foi a vez de se homenagear, num lugar na serra, do lado galego, perto de Campobecerros, outros homens: carrilanos que resistiram, depois do golpe franquista de 1936, à instauração da ditadura. Eram homens que trabalhavam na construção do caminho-de-ferro (daí o nome “carrilanos”) e que resistiram (até à morte) ao avanço dos falangistas.
Homenagem sentida e emocionada, junto a uma placa onde se lia «Em memória dos carrilanos portugueses, veciños do Concello de Castrelo do Val asasinados por forzas fascistas o 20 de Agosto de 1936/ O esquecemento leva a que feitos como estes se poidan repetir (3 Junho 2012)».
Primeiro, palavras de Pepe (“é preciso dizer que a Guerra Civil não foi uma ‘guerra civil’, foi um golpe!”) lembrando também que não foram só os antifascistas que foram atacados, presos e assassinados, mas todo o povo galego. Houve ainda agradecimentos finais feitos por Paula Godinho, com vários amigos e amigas galegas ali presentes. Depois do coro cantar algumas canções («pueblo que canta no morirá…»), cantámos juntos a inevitável «Grândola, Vila Morena».
Seguiu-se uma visita à campa não identificada de dois dos assassinados no cemitério de Campobecerros. E depois houve almoço num restaurante local e familiar, onde se comeu cozido galego e truta, enquanto se cantaram mais canções de luta e se trocaram histórias. E leram-se ali palavras da Autobiografia de Mário Dionísio sobre a Guerra Civil:
«A guerra de Espanha, aqui ao lado, vivida dia a dia e hora a hora com o ouvido colado aos aparelhos de TSF, por causa das interferências meticulosamente provocadas, por causa dos vizinhos (fossem eles quem fossem), com projectos ansiosos de ir lá ter («Partir./Partir para a pátria instável onde o grito salta das veias», versos meus de 38) e o remorso de ficar. As notícias diárias dos bombardeamentos, dos fuzilamentos, das aldeias destruídas, sem pão, sem armas. E o «no pasarán!». O não passarão vibrando no nosso desespero, ainda antes de gritado nas barricadas de Madrid, sentido em silêncio e lágrimas, neste país agrilhoado, esvaziado, com os amigos perseguidos, presos, torturados, muitos deles mortos não se sabia onde. Houve um tempo em que nem saber onde estavam se podia.»